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quarta-feira, 29 de julho de 2009

Quem não vê, mas enxerga(III)

No final dos anos 70, a equipe da então TI da Cemig havia empreendido um esforço conjunto e comprado uma máquina de digitar em Braille, a fim de facilitar as coisas pro lado do João , já, naquela época, um brilhante e habilíssimo programador de computadores. A máquina escrevia em Braille, que João lia com a rapidez de um coelho de desenho animado e datilografava com a destreza de um catador automatizado de milho....
Naquele momento, chegou às nossas mãos uma notícia interessante: Um engenheiro americano, pai de uma filha cega, havia inventado uma sofisticada máquina para leitura de caracteres tradicionais, escritos em que língua fosse. A máquina era algo do tamanho de um gravador de cassete da época, e funcionava baseada numa micro-câmera que transformava o caracter lido em pulsos elétricos que acionavam uma matriz de pequenas agulhas, que, por sua vez, moldavam a forma da letra escaneada. Ou seja, quando a câmera focava uma letra A, por exemplo, o formato da letra, um triângulo com um corte no meio era sentido pelo dedo indicador do seu usuário, justaposto no receptáculo onde ficava a tal matriz de agulhas. O deficiente lia, em alfabeto universal, por alto relevo, por assim dizer. Letra a letra, ia montando mentalmente a sintaxe das palavras, a semântica da frase e costurava o seu contexto. A equipe da TI, imediatamente iniciou um projeto de comprar a máquina, chamada OPTACOM. A compra era um grande lance de ousadia. A máquina era importada, custava quase o equivalente a um Wolks zero na época, além de diversos pontos de dúvidas a respeito da adaptação do usuário deficiente que tinha que canalizar a sua sensibilidade para a ponta do dedo indicador. Imagine o quanto isso produziu de brincadeiras e octanagens. Essas bobagens o faziam delirar, especialista que era em duplo-sentido. Na época, a equipe conversou com pretensos usuários da máquina, e todos haviam desistido nos primeiros testes de sensibilidade. Eu me lembro que , numa ida a São Paulo, procurei por um deficiente visual, também programador, do banco Itaú, que me falou das enormes dificuldades e da sua desistência do Optacom. Em suma, um projeto de altíssimo risco, dadas às condições de preço, adaptação e da burocracia infernal que o Governo impunha para se importar algo. Pesquisamos e vimos que era mais fácil importar um Jaguar do ano do que a tal máquina. Como a equipe da TI sabia o que aquilo representava no desenvolvimento profissional de João ,decidiu-se por tocar o projeto. Fizemos uma rifa de uma televisão e o restante do dinheiro necessário, foi emprestado pela Forluz. Resolvida a parte financeira, faltava equacionar o aspecto da importação e da sensibilidade do dedo indicador, que João garantia haver desenvolvido muito bem, sem explicitar detalhes do como.... A equipe da TI, através de pesquisas, chegou a uma instituição em São Paulo, chamada Fundação para o livro do cego do Brasil, hoje Fundação Dorina Nowill para cegos. Essa instituição, fundada pela senhora que lhe confere o nome, foi o gesto maior de uma rica paulistana que resolveu dedicar parte de sua fortuna à nobre causa de aliviar um pouco o fardo das pessoas cegas no Brasil. Ela também é cega.
Bingo.. Falamos com a Fundação, que nos informou que poderiam intermediar a importação, mas antes exigiam um teste do pretenso usuário num Optacom de que dispunham, devido à extrema dificuldade que o aparelho apresentava na adaptação. A equipe da TI, montando uma operação de guerra, conseguiu uma passagem para João ir a São Paulo, a fim de se submeter ao teste decisivo. Aproveitando uma ida minha a São Paulo, a serviço, ajeitei uma entrevista com a equipe da Fundação. E lá fomos nós, eu e João , em direção a Fundação do Livro do cego do Brasil.
A instituição, uma espécie de último reduto de deficientes visuais de todas as idades(de recém-nascidos a anciões), sugere logo no seu primeiro contato, o quanto somos aquinhoados por termos a faculdade da visão perfeita, sentido que transformamos no nosso canal de comunicação mais importante, eficiente e informativo.
Na sala de testes, após rápida entrevista, a instrutora colocou João no Optacom separado e ficamos(eu e ela) num outro terminal, por onde fluíam letras isoladas, de tamanhos diferentes e em velocidades que ela aumentava ou diminuía, na medida da dificuldade de sua identificação. Depois viriam frases compactas e textos mais longos. No outro lado, João com o dedo indicador espetado no Optacom, teria que interpretar as letras que estavam fluindo, como num letreiro de teleprompter.
Regras colocadas, o teste se iniciou. A primeira letra, João não consegue identificar, Nem a segunda. A partir da terceira começa a dar sinais de uma percepção sensorial fora do comum. O tal dedo que João garantira estar treinado, não perdia mais uma As letras se sucediam na tela do computador, enquanto João passava a identificá-las montando frases , como se fosse um vidente em transe psicográfica. A instrutora continuou e depois de algumas baterias a mais, me falou:
___Poucas vezes vi isso na minha vida. Pode comprar o aparelho imediatamente. Vamos discutir a importação, disse ela...Compramos o aparelho e João usou desde então.Por muitos e muitos anos, o aparelho foi o seu grande aliado. Ele lia telas de terminais, impressões de computadores, livros e apostilas e até bula, bastando trocar a câmera, cada qual adaptada a um tipo e tamanho de escrita. Mais uma vez, João mostrou a sua capacidade de pulverizar dificuldades, que para nós os mortais seriam intransponíveis. Essa é a figura singular de João, que estudou Administração na Federal escutando textos gravados pela sua esposa, transformando-se em brilhante analista de sistemas e continua a ensinar que não existem grandes obstáculos, mas apenas vontades menores de vencê-los. Esse João, que não sabe como são as formas do mundo, o rosto dos amigos, as feições de suas belas filhas, também não tem nenhuma referência sobre as cores. Esse João aprendeu a ver o seu mundo, livre de limitações geométricas e todo pintado de azul, cor aliás que ele não sabe descrever com palavras, mas entende com o seu coração de cruzeirense apaixonado....

Um comentário:

  1. Silvia Calmon de Albuquerque1 de setembro de 2010 às 13:34

    Sensacionais as histórias do João! Parabéns para ele por ser esta pessoa que se tornou um mestre a partir dos obstáculos e parabéns para você que soube retratar tão bem estas estórias!

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