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sábado, 25 de julho de 2009

Quem não vê, mas enxerga(II)

Certa ocasião, convidei João para almoçar comigo. Fazia isso algumas vezes, não só pela amizade e pela possibilidade de estar aprendendo com ele, mas também para fazerem os meus filhos começar a refletir sobre o conceito efetivo do que é dificuldade. Meus filhos o tratavam de Tio João e , pela idade, transbordavam uma curiosidade natural quando o viam chegar comigo, pilotando uma bengala branca e óculos escuro. Eu sempre aproveitava para transformar a curiosidade das crianças em aprendizado de vida, contando-lhes como João vencia os obstáculos, que eu próprio às vezes esconjurava, em lamentos freqüentes do meu cotidiano. Certa vez, numa das idas para um almoço, fomos conversando amenidades quando João me perguntou se eu ia sempre de carro para almoçar. Na época, eu morava na Rua Tenente Garro, quase esquina de Contorno, e lhe respondi que sim, que evitava ir de táxi, mesmo sob a possibilidade de, na volta, não ter uma vaga para estacionar nas imediações da Barbacena. Usando expressões irrefletidas, falei
___João, táxi é muito caro. Eles cobram o olho da cara.... Um segundo após, eis que ele me responde:
___ Então, eu poderia ter vindo, pois não tenho um e pagaria com o outro que é de vidro.... Será que o taxista aceitaria?.... Numa incomum demonstração de paz interior e de pleno domínio das agruras da vida, ele me deu uma resposta, com um viés que sempre foi a sua marca registrada: a irreverência com que debochava das fendas enormes que o destino lhe colocava no caminho. Isso tanto no sentido figurado, quanto no sentido material. Algumas vezes, ele foi parar no fundo de buracos abertos pela concessionária de telecomunicações de MG, inconseqüentemente deixados sem a devida sinalização. Algumas empreiteiras, consideradas de visão, não enxergavam um palmo a frente do nariz. Menos do que ele, dizia João, esgrimando a sua verve de irreverência .
Chegamos para o almoço.Na época, o meu prédio era de 3 andares,mas existiam mais outros dois abaixo do nível da rua.. Assim, quem parasse no último nível de garagem, como fiz naquele final de manhã, teria que subir o equivalente a 5 andares, pois o prédio, por ter 3 andares oficiais, não tinha elevador.. Na realidade, tinha 5 andares , mas dois estavam escondidos....
Subimos os 5 andares, eu aplicando os conhecimentos de acompanhante de cego, que ele próprio me ensinara. O guia não segura no braço do cego. O cego simplesmente toca o braço do guia, deixando-se levar sem apertos e amarras.
Depois do almoço, iniciamos o retorno, em direção ao carro, estacionado no último nível da garagem, cinco andares abaixo. Percebi então, que João , embora guiado por mim, fazia o caminho de volta, descendo as escadas com muito mais rapidez e desenvoltura e sem usar a bengala como sinalizador de degraus e patamares. Quando chegamos na Cemig, lhe perguntei intrigado, o porquê daquela rapidez inesperada e impressionante, próprio de um menino serelepe descendo degraus que conhece como a sola dos pés.
____Simples, meu caro. Na subida, eu fui contando os degraus e os lances de escada. São 70 degraus e 10 lances, afora o degrau de chegada na última garagem. Na descida de volta, fui simplesmente diminuindo a contagem . Sem problema. Eu sabia, que num intervalo de almoço ninguém constrói mais degraus numa escada já existente. Não daria tempo.......
Esse é o João . Rápido nos números e hábil em usá-los a favor dos seus amigos. Até hoje, passados mais de trinta anos, ele telefona religiosamente para minha casa todos os dias 06/03, 13/05, 07/04 e 31/03 para abraçar os seus amigos, que aprenderam com ele, coisas que não teriam aprendido sozinhos.... Nunca a sua matemática se esqueceu de um dia sequer...

Um comentário:

  1. Não sei se vocês sabem, mas 31/03, dia de aniversário da revoluçaõ de 64, é o aniversário do Barbieri.

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