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sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Lágrimas classificadas

Quando minha mãe morreu em 1975, eu chorei lágrimas de saudade. Fluentes e um pouco constrangidas nos meus 26 anos, elas chegaram na noite de 22/05, quando trilhei sozinho o caminho de São José dos Campos à Cruzeiro. Na alta madrugada, inverno rigoroso, elas lubrificaram as lembranças das suas músicas preferidas que eu sempre dedilhara toscamente ao violão, ainda que ela me considerasse o cantor dos seus hits preferidos. Mãe, é mãe, todos sabemos....
Quando meu pai morreu em 09/96, chorei lágrimas de amizade. Em menor quantidade, mas suficientes para embaçar os olhos. Foram brotando, gota a gota nos caminhos das Vertentes, Mantiqueira até chegar em Cruzeiro novamente. Nessa trilha, tive o afago discreto dos filhos, que montaram sentinela evitando que a tristeza se aproximasse, mas as lágrimas, vocês sabem, essas não pedem permissão para chegar;
Quando você, minha amiga, se foi hoje, dia 25/11/10, eu chorei lágrimas de sinceridade. Elas começaram na Montes Claros, a caminho da Clivet e da decisão mais difícil da minha vida. Elas vieram em profusão, maior do que o razoável, principalmente para um sexagenário que deveria, por dever da idade, ser contido pelas laqueaduras de sentimentos por que passamos nesses mais de 22.000 dias vividos. Além disso, por estar chorando por um "ser" menor , numa hipotética escala de valores de sentimentos, como se essas coisas pudessem ser quantificadas com a métrica dos racionais. Foi aí que eu percebi que as lágrimas são diferentes nas suas proposições. Podem apostar. Quem inventou esse "engine" emocional, fundamental para a irrigação da alma, sabia das coisas.  As lágrimas de saudade tem a cor dos riachos transparentes que se projetam na volta dos nossos tempos.Embaçam os "replays" que insistimos em reproduzir, confundem a trilha  do fundo musical, correm em torrentes volumosas e terminam na curva do rio, drenadas pelas fendas das nossas emoções.
Já as lágrimas da amizade são também verdadeiras, porém mais contidas.Nos remetem aos sorrisos marotos, brincadeiras sem graça, aos grandes amigos, às  imitações da vida e podem até passar certas tonalidades cênicas,  mas nunca cínicas.
As lágrimas da sinceridade são diferentes, pois se postam como espelhos a mostrar como aquele que se foi, nos amava pelo que somos. É como se nos enviassem "streams" de lá para cá, desenhando rabiscos para mostrar que gostou da gente de forma incondicional. Você, companheira felina, testemunhou todos os meus mal-escritos, e tantos foram. Aqui  nesse mesmo teclado, hoje até meio úmido, onde eu batucava as minhas  linhas e você, sentinela do meu silêncio, assentia com a sua discrição companheira. Você,que lambia os meus cabelos brancos ou tocava o seus olhos azuis na minha face, quando definia que era hora de parar. Era assim que você me dizia as coisas, na eloquência de seus pequenos gestos silenciosos, aliás, como fazem os felinos, diferentemente dos ferinos.
Pois hoje, no meu colo, você miou diferente, no caminho da Montes Claros. Em 10 anos, nunca ouvira algo tão triste e as lágrimas da sinceridade me avisaram que tinha chegado a hora de partir.E você partiu, silenciosa e sem dor e até o mouse sem fio, seu companheiro de lutas aqui na minha mesa, perdeu a sua energia  e parou. Trocou a luta pelo luto.  E agorinha, quando me preparava  para tentar escrever algo sobre você, observei que no seu lugar de sempre, ao lado do teclado, restava um tufo de seus pelos. Ato contínuo, resolvi colocá-lo no quadro de avisos,onde "penduro" os fragmentos da minha vida, defronte à minha mesa. Por uma interessante  coincidência, o magneto que usei para afixar o seu pelo ao quadro, tinha a forma de uma estrela, e a feliz combinação dos dois elementos formou um cometa. Ali ele ficará para sempre. A estrela, que era você, seus pelos desfiados e os meus apelos descabidos  para que voltes.....

4 comentários:

  1. Lindo texto, até chorei...hehehe

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  2. Entendo perfeitamente seu sentimento, traduzido maravilhosamente neste texto. Você sabe bem que, como você, compartilho da enorme saudade daqueles fiéis bichos-amigos que se foram e com os quais tivemos a oportunidade e a felicidade de termos a companhia para alegrar nossas vidas. Sinto mesmo pela enorme perda... Grande abraço, Aléxia Lage

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  3. Descreveu muito bem esses instantes e esses sentimentos. Parece que a vida tem um momento para nos ajudar a entender seus caminhos de maneira tão especial. Obrigado por compartilhar esses momentos.

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